Não havia muitas pessoas no seu enterro. Os familiares preferiram fazer-se presente com uma coroa de cravos e uma faixa branca, onde se podia ler: "eternas saudades". Os choros derramados e as velas acesas eram de suas companheiras de trabalho, ou melhor, suas amigas. Suas amigas, quase irmãs, que acompanharam os desafios do dia-a-dia da sua profissão. Distante, perto da lápide de uma dama da sociedade, o cafetão jogava suas pragas na falecida. Ela morreu devendo uma quantia considerável. Não se conformava de ter pedido de uma só vez a melhor de "suas" meninas e o dinheiro que ela devia por anos de serviços prestados.
Sua morte ainda era um mistério. Tinha sido encontrada nua e esfaqueada no quarto de um motel. Seu caso estava sendo investigado pelas autoridades. Pelo menos é o que dizia o delegado do Departamento de Polícia, um dos suspeitos pelo crime.
A última pessoa a deixar o cemitério foi uma moça alta, magra, de olhos esbugalhados que vestia um vestido preto bordado com rendas. Essa moça chorava muito. Não se conformava de ver sua companheira de apartamento deitada num caixão barato. "Ela sempre deitou-se nas melhores camas da cidade". Agora, estava deitada sem nenhum companheiro ao lado, estava sozinha. "Pelo menos está deitada com a mais pura das companhias, as flores. Vai com Deus, amiga".
Aos poucos, pingos de chuva começaram a cair. O coveiro decidiu cobrir o caixão com uma lona para só no dia seguinte enterrar de uma vez aquela vítima de um dos crimes mais chocantes da pacata cidade. O cemitério estava com um cheiro forte. Um aroma de vazio. O vazio de corpos sem almas. E os vermes, esbanjando vitalidade, já começavam a rondar a nova carne.
Logo a chuva parou. Já era madrugada. Do cheiro de morte podia-se sentir um outro mais apurado. Esse outro cheiro vinha detrás de uma árvore. Uma árvore que alugava seus galhos para morcegos e corujas. Esses animais sinistros só encontrados em cemitérios. Havia também uma ou duas rasga-mortalha. Uma fumaça sutil, discreta, fazia acrobacias sobre a atmosfera densa das lápides. Algum humano vivo estava ali. Todos sabiam que muitos procuravam os cemitérios nas madrugadas para realizar inúmeras atividades. Rituais apocalípticos, sexo, meditação, piquenique, roubo de letreiros de bronze que decoravam os túmulos. Possivelmente, dessa vez, aquele que estava atrás da árvore estava fumando alguma erva. O vício de um fazendo inveja aos corpos mortos, que enquanto vivos expeliam pelos seus poros os inúmeros e diversos vícios típicos dos homens. Vícios conscientes e inconscientes, lícitos e ilícitos, os vícios dos fracos e dos fortes.
O sujeito atrás da árvore tinha um porte esquelético. Usava uma calça preta suja e uma camiseta vermelha sem nenhuma estampa. Possuía cabelos encaracolados e brincos nas duas orelhas. Estava fumando. Depois de consumir um de seus cigarros preparado com cuidado por ele mesmo, levantou-se e foi em direção da cova da mais nova moradora do cemitério de Nossa Senhora da Purificação. Examinou cuidadosamente a cova coberta pela lona preta. Sentou-se olhando para a coroa de flores enviada pela família. Fumou mais um pouco e decidiu retirar a lona. Quando viu o caixão soltou um riso irônico. No mínimo era um pobre que estava ali dentro. Apenas uma coroa de flores e um caixão barato. Pegou algum instrumento de ferro e começou a bater com força nos cantos do caixão. Logo fez uma fissura e com uma força mínima abriu e deu de cara com uma das mulheres mais linda que tinha visto.
Ficou por alguns segundos olhando para aquela moça que julgou ter traços tão doces e tranqüilos. Mal sabia ele que em vida, aquela mulher usava do atrevimento e da malícia para sua sobrevivência. Ela nunca dispensou uma confusão. "Eu gosto de um barraco". Desde seus quinze anos tinha aprendido que no mundo as coisas resolvem-se no grito. Nunca hesitou em chamar palavrão. Ela não chegava a ser temida pelas pessoas. Pelo contrário, era amada. Todos a amavam. Era uma pessoa prestativa. Mas não inventasse de pisar no seu calo. Muitos riam de suas maluquices. A única pessoa que não gostava dela no bairro era sua professora de catecismo. Dizem que a menina havia descoberto algum segredo de sua professora e com isso fazia chantagens. As más línguas espalhavam o boato de que a "professorinha" tinha um caso com um padre que esteve por pouco tempo na paróquia. A verdade ninguém sabe ao certo. Mas aos doze anos ela fez sua primeira comunhão. Mas nunca conseguiu decorar a salve rainha direito.
Ele achou pura e delicada a figura deitada junto das flores. Retirou flor por flor. Rasgou vagarosamente o vestido branco que ela vestia. Passou a mão sobre seus cabelos negros e lisos. Com muito esforço conseguiu virá-la de bruços. Sua bunda era volumosa e bem definida. Excitado, baixou o zíper da sua calça e pressionou seu pênis na carne fria daquela mulher desconhecida. Seus pensamentos não obedeciam a uma ordem lógica. Deu muitos personagens para aquele corpo morto. Primeiro imaginou-a professora do jardim de infância. Depois atribuiu a ela o ofício de dona de casa, que zelava pelos filhos e pelo marido. Imaginou-a de várias maneiras. Gozou.
Sobre o corpo dela e com seu pênis ainda encaixado em sua bunda, relaxou por alguns minutos. O ritmo cardíaco aos poucos foi voltando ao normal. Saiu de cima do corpo, virou-a para vê-la novamente. "Uma Santa!" Colocou-a na posição que estava, fechou o caixão e cobriu com a lona. Saiu sem muita pressa, com passos despreocupados, vagando pelos labirintos de lápides. Enquanto andava, aproveitou para fumar mais um de seus cigarros. Viu o túmulo da Ana que morreu de um acidente. Viu o túmulo do senhor Francisco José que faleceu de câncer. Parou para ler os versos inscritos no túmulo do poeta popular Manoel Caiçara. Admirou a beleza de Maria Aparecida que se suicidou aos quinze anos por motivos desconhecidos. Viu flores, velas, santos, querubins. Viu também uma grade com uma cruz imensa onde diziam que ali estava uma menina que virou cobra quando morreu. Ela havia virado cobra porque não tinha sido uma boa filha. Riu. Parou diante o túmulo com uma foto de uma criança. Ele sentiu um arrepio quando imaginou uma criança morta. Por minutos ficou olhando a foto do menino. Seu momento de contemplação foi interrompido por uma voz que veio detrás dele.
- Não esqueceu de nada, rapaz?
Assustado virou-se para ver quem estava falando.
- Lembra-se de mim?
Ele não acreditou no que viu. Ali, diante dele, estava em pé justamente a moça de feições pura e delicada. A moça morta no túmulo estava falando com ele.
- Você está morta! – ele disse em voz baixa.
- Quantos baseados você fumou? Rapaz, vamos deixando de conversa mole e passa a grana que você me deve.
- Você está morta! Você é a moça do túmulo que abri.
- Cinqüenta pelo serviço e mais vinte por me fazer perder tempo aqui com você.
- Como assim? O que é que você está falando? Que negócio é esse de cinqüenta, vinte. Eu num devo nem pra vivo, imagina pra gente morto.
- Amigo, ta pesando que dar a bunda é fácil? É o sexo mais procurado pelos meus clientes, logo é o mais caro. Cinqüenta pelo serviço e agora mais trinta por essa conversa mole. Eu tenho que trabalhar, meu bem. Vamos logo, passa essa grana rápido.
- Que serviços você me prestou? Você está morta! Não vou pagar nada a defunto.
- Veja bem, querido. As coisas funcionam assim comigo: me paga logo o que tu me deve e some, caso contrário, chamo o Elias, meu cafetão, e tu ta ferrado.
- Você está morta, querida!
- Querido, se eu estivesse morta estaria conversando aqui com você?
- Você é uma alucinação da minha cabeça, só pode ser.
- Nossa! Eu provoquei tudo isso em você. Nunca nenhum homem delirou tanto comigo assim... Ta certo que minha bunda tem algum mistério que eu desconheço. Passa a grana!
- Meu Deus! Que erva foi essa que eu fumei? To falando com gente morta!
- Ei! Não coloca o nome de Deus nas coisas, ok? É o seguinte, vou ser boazinha, me paga só os cinqüenta que tu me deve.
- Eu não lhe devo nada. Você nem humana é.
- Como assim? Ta vendo esse corpinho aqui? Essas curvinhas aqui? Esses peitos enormes aqui? Tudo isso é carne. Carne de primeira. Sou a mulher mais disputada dessa cidade. Por isso que não sou barata. Também acho um pouco salgado o que eu cobro. Mas também tem o Elias, aquele safado! Tu sabe o que aquele cafajeste faz comigo?
- Sei não senhora, nem quero ouvir.
- Ah! Mais tu vai ouvir sim. Tu num sai daqui enquanto eu falar. Pois bem, o Elias, desses cinqüenta, fica com trinta. Eu fico com o resto. Esse resto é para juntar com os outros restos dos outros clientes pra pagar as contas lá de casa, porque a casa não é minha, é do Elias.
- Vamos fazer o seguinte. Olha ao seu redor e vê onde você está.
- Claro que sei onde estou, querido. No cemitério. Pulei esses muros várias vezes. Nunca entendi porque tem gente que tem tara para transar em cima de cova. Vai entender. Mas te digo, já fiz em lugares piores. Acredita que quando eu morava na capital um cara me pagou pra gente transar no zoológico? Na frente do macaco! O macaco ficou excitadíssimo. Nossa! O cara ficou louco. Mas deu zebra...
- Era zebra ou macaco?
- Não! Deu zebra, sabe? Deu azar. O macaco começou a gritar lá e fazer barulho. Acabou que a polícia levou a gente em cana. Mas o cara era filho de bacana e num instante liberaram a gente.
- Ainda bem! Eu só quero dizer que você deve ser algo de minha cabeça. Você não é real. Pelo menos até alguns dias atrás. Você está morta, me entende?
- Escuta! Não tenho tempo para ficar aqui ouvindo conversa de viciado. Você já teve seu sexo, agora me paga por ele.
- Olha, vamos aqui comigo. Vou te mostrar teu túmulo.
- Eu num saio daqui nem morta! Paga logo senão eu grito pelo Elias.
- Então grita! Vai! Grita!
- Malandro safado! Elias! Elias! Elias!
- Pode chamar, o Elias não vem. Você está morta!
- O Elias deve ta ocupado com a Regininha. Ela é muito tapada, sabe. Todo dia ela tem que chamar ele para resolver algum pepino. Ela é bobinha, coitada. E feia também. Nossa! Com ela você pode chamar de morta. Ela é a verdadeira morta-viva.
- Olha, preciso ir. Daqui a pouco amanhece e os funcionários chegam. Vai assustar outro, porque a mim você não assusta.
- Grosso! Audácia sua falar assim comigo! A vida é difícil sabia? – ela falava soluçando – Saí de casa aos quinze anos porque peguei um bucho. Tive que dar minha filha para ela não passar fome. To nessa vida por falta de opção.
- Olha, desculpa. Não queria ofender. Como assim? Eu to consolando um defunto!
- E ainda tem mais. Não posso sair na rua que o povo me xinga! Me chama de safada, puta. É peso o que eu passo, só eu sei.
- É... a descriminação é horrível. Também passo por isso, só porque uso brinco, tatuagem e fumo.
- Imagina se descobrirem que você transa em cemitério?!
- E ainda mais com gente morta!
- Para de me chamar de morta seu indelicado! Vou embora. Seu estúpido. Não me procura mais ta me entendendo. Não me procura mais! Tu ta queimado comigo! Se aparecer, morre. Ouviu! Morre!
Ela saiu chorando entre os túmulos. Ele ficou vendo ela desaparecer. Ainda não entendia o que tinha acontecido. Era tudo muito estranho. Pensou em ir até o túmulo mais uma vez. Mas ouviu um barulho. Já estava amanhecendo. Deviam ser os funcionários do cemitério. Escorou-se ainda numa lápide e ficou fumando. Jogou o cigarro no chão, pisou-o e começou a andar em direção do muro que havia pulado para entrar no cemitério. Enquanto andava, viu as lápides de Maria Antonieta, uma senhora que morreu de morte natural. Viu Otávio, o dono da mercearia que morreu de infarte. Tancredo que morreu assassinado por bandidos. E viu por último uma lápide com uma foto de um jovem de cabelos encaracolados que aparentava ter seus vinte e cinco anos. Ele usava brinco nas duas orelhas. Não havia coroas de flores, nem velas, nem querubins. Havia apenas letras em bronze dizendo: eternas saudades. Chorou. Acendeu mais um cigarro e desapareceu por detrás das paredes do cemitério de Nossa Senhora da Purificação.
Saulo de Tasso Russo Barreto