terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Os quatro Bêbados

É que nossos pais não nos educam para os vícios. E assim ficamos nos envenenando com a língua queimada de prazer. Quatro bêbados que cruzam as ruas. Que transborda revolta e suspira um devir. Nas escadas, tropeços. Nas ladeiras, pecado. Quatro bêbados e quatro peitos esfaqueados de esperança. Suas histórias não serão impressas. Ao menos que seus canivetes marquem árvores, calçadas e postes. Assim, infinita-se um escarro de vida. São esses quatro bêbados que cantam para os jardins orvalhados de cotidiano. Que se misturam às escórias e que escutam as palavras lançadas gratuitamente de bocas insones. Por que a madrugada é ambígua. Para uns, chegou a hora de serenar este corpo que empresta ao espírito a possibilidade dele gozar seus erros íntimos. Mas como tudo que se empresta, o corpo cobra com reajustes toda célula degradada e todo tecido rasgado. Para os quatro bêbados, e tantos outros quatro bêbados que as ruelas testemunham existir, a madrugada se resume aos vômitos desesperados. As tonturas que multiplicam o mundo em inúmeras maneiras de ser. As lembranças de um presente recente e os gritos de paixões mal resolvidas. É que as paixões são feitas de sal. Elas destroem nossos sistemas e explodem um único órgão apelidado de coração. Esse, que palpita o poeta, acelera em notas compassadas, como música. E também é compassado o andar dos quatro bêbados. Vestidos como mendigos. Ou são os mendigos os bêbados embriagados de negações? Anda-se por andar. É que as avenidas foram feitas para carros e somos obrigados a nos esbarrar por entre calçadas estreitas e esburacadas. Vez por outra nos olhamos e raramente nos reconhecemos. Não! Eles não querem a piedade. Não querem preces, nem ajuda. Os quatro bêbados só peregrinam atrás de alguns trocados. É que fomos vendidos ao dinheiro. No primeiro bar, os quatro bêbados vão compartilhar o trago amargo da cachaça. E nas casas, sob o céu de uma Lua indiferente às lágrimas – porque ela é a musa dos versos, das pinturas e dos cantos – os demais dormem na hora marcada e experimentam o porre da lucidez.

Traição

Raros são os corações que conseguem perdoar mais de uma vez. Caros leitores, foram quatro traições. Quatro vezes ele deitou na cama para ferir o coração da única que seria capaz de lhe perdoar quatro vezes. E quando uma pessoa consegue perdoar quatro vezes o seu amante, as portas do céu são dignas de serem escancaradas para tal criatura desfilar com louros na cabeça. Ele traía não por desejo, mas por vício. Ela perdoava não por amor, mas por ouvir dizer que Cristo ensinou a perdoar setenta vezes sete vezes. E não continha suas lágrimas ao imaginar na via crucis que seria se tivesse que tolerar setenta vezes sete traições. Talvez com setenta vezes sete pessoas diferentes. E se para cada traição ele fizesse aquela cara cínica de arrependimento, ela teria certeza que havia atirado pedra na cruz. Dos rosários rezados toda manhã, ela nunca pediu para que seu marido saísse do vício. Sempre pediu para que todas que houvessem deitado na cama com ele fossem condenadas com o fogo do inferno no dia do juízo final. Não sentia ódio dele, mas também não sentia amor. Dizia que o amava para o padre, para as vizinhas, suas irmãs. Para seu marido nunca havia pronunciado um eu te amo. Ele, mesmo antes de sair para as quatro traições, sempre disse “eu te amo” no seu ouvido. Difícil saber se era verdade visto que o cinismo era seu inseparável companheiro. Já a inseparável companheira dela era a fé. Jamais escorregou na sua fé. E os céus são testemunhas da sua devoção. Ela sentia-se uma alma boa. Só para lembrar caros leitores que raros são os corações que conseguem perdoar mais de uma vez. E responsabilizava a fé por ter curado todas as dores que seu peito havia sentido. Todas as tristezas, decepções foram pela fé combatidas. E esta fé provinha de sua própria força de vontade. E sua maior vontade era a paz infinita. Era o céu com os anjos e o menino Jesus colhendo figos. Ela esperava ganhar o céu. Mas toda vez que pensava nisso consequentemente pensava em sua morte. Tinha medo de morrer. Ela tinha medo de sentir dor. Imaginava-se na cama enferma, sentindo suas carnes tremerem e seus ossos rangerem como se formasse um coro. Ouviria a trombeta da morte? E esse pensamento emendava com outro. Quem estaria do seu lado na hora da separação do corpo e espírito? A última pessoa que ela desejava estar junta nos seus últimos minutos era seu marido. Ela sabia que isso era muito pouco provável. Por que ele abandonaria seu cinismo e derramaria lágrimas sinceras de arrependimento na beira da cama onde ela estaria estendida. A morte o obrigaria a isso. E esta cena, que ela visualizava em sua mente, deixava-a ainda com mais medo. E dessa vez seria o medo de descobrir se em toda a sua vida realmente o amava. Em vida é quase impossível ter a certeza absoluta de que ama ou se é amado. Mas na morte a verdade aparece cruelmente. Sentia o medo de descobrir que seu amor era o que fazia com que perdoasse as quatro punhaladas dadas no seu coração. E dessa forma, não conseguiria perdoar-se por amá-lo. Quando percebia que todos esses pensamentos começavam a angustiá-la, pegava seu rosário e pedia o fogo do inferno para as infames que dormiram com seu marido. Por que, meus caros leitores, são raros os corações que conseguem perdoar a si mesmos.

Identidade

Poderia me chamar Maria. Talvez Isis. Se seguisse a numerologia, Helena. Patrícia, Vitória, Elizabeth... Meus pais me batizaram com um nome que estranho. Tereza, Narcisa, Luana... Está datilografado na minha certidão, impresso na carteira de identidade. Na lista da chamada escolar. Nos cartões de aniversário. Na conta do cartão de crédito. Está gravado nas agendas telefônicas, nos celulares. Esse nome que me aparenta não estar em consonância comigo mesmo. Suzana, Luzia, Edna... Se coubesse a mim a escolha de meu nome gostaria de ser anunciado por... Laura, Rita, Gabriela... São tantas as possibilidades de ser. Ser Lívia. Ser Valéria. Ser Simone. Ser Joana. Madalena, Tânia, Fátima... Pouca é a probabilidade de ter. Ter Eva. Ter Adriana. Ter Vera. Mônica, Rosa, Sara... E só depois de alguns anos do seu nascimento você percebe que existe uma multiplicidade, mas você fica aprisionado entre vogais e consoantes que, muitas vezes, foram predeterminadas antes mesmo de você inaugurar o mundo. Sônia, Lúcia, Gisele... A fama pode espalhar ainda mais aquilo que menos te pertence. E estarás nos autógrafos. Nomes de ruas. Poemas. Batizará escolas, instituições. Bárbara, Lígia, Geni... Até na morte se estampará aquilo que desejaram que fosse. Na lápide, Célia, Diana, Sandra... Mesmo assim você morre. Aparecerá outro alguém com seu mesmo nome. E é muito provável que tenha as mesmas insatisfações. Catarina, Josana, Verônica...

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

SEXO

O amarelo deitou-se com o azul. Depois de demorados beijos, o amarelo resolveu tirar, sem pressas, a roupa do azul. A respiração das cores estava ofegante. O quarto era uma suíte imperial. O motel estava lotado. Vez ou outra se escutava rangidos em quartos vizinhos. O azul era mais comportado e pediu para que o amarelo fizesse um strip-tease. O amarelo soava frio. Hesitou um pouco, mas ficou de pé em cima da cama e começou a tirar suas peças íntimas. O azul esticou o braço e conseguiu pegar o controle do som. Ao apertar play, uma melodia sensual invadiu o quarto inspirando mais ainda o amarelo que já dançava freneticamente. Depois de ver muitas reboladas, azul puxa pelo braço sua companhia e lasca um beijo ao mesmo tempo que pressionava todo seu corpo no corpo totalmente nu do amarelo. As bocas meladas de saliva. Os olhos se encontrando e desejando mais um ao outro. As pernas se cruzando desarrumando lençóis e jogando travesseiros no chão. Respiração úmida, ofegante, rápida. Mãos arranhando costas. Peitos se tocando. A nuca sendo explorada pelos lábios. As cócegas. Os arrepios. Os palavrões. Os imperativos dos verbos pronunciados. A voz rouca, enfática. No chão, a solidão das roupas esquecidas e o lamento das taças de vinho ainda pela metade. O quarto estava em meia luz. O amarelo e o azul deitado projetava na parede uma silhueta verde. A sombra verde desenhava os contornos dos corpos. Celulares e carteiras em cima da mesa. Porta fechada a chave. O relógio em ritmo compassado. Depois de um tempo, gozo. Líquidos escorrendo. Suor. Nojo. Banho demorado. Azul destranca a porta e entra no carro. Depois entra amarelo ainda abotoando a camisa. No quarto quarteirão azul para o carro. Amarelo desce e diz adeus. Azul acelera. O dia está claro. No semáforo o sinal vermelho. Azul parado na faixa de pedestres derrama uma lágrima, esperava um final um pouco mais colorido.
Saulo de Tasso Busso Barreto

domingo, 31 de agosto de 2008

Errar

Sabes conjugar o verbo errar? Eu erro... Tu erras... Ele? Erra também. Somos um acúmulo de erros. Somos o erro da maçã comida. O erro das bruxas carbonizadas. O erro das cruzadas insanas. O erro das câmaras de gás. O erro de Hiroshima. O erro do Vietnã. O erro do apartheid. O erro do Carandiru. Da candelária. Da Febem. E temos mais uma coleção catalogada de erros. O bom dia que não respondemos. A buzina dispensável dos engarrafamentos. O copo de sorvete no chão. O orgasmo antes da hora. O avanço no sinal vermelho. O troco não recebido. A nota fiscal não dada. A ligação prometida e não feita. Pisar no pé de um desconhecido na rua e não pedir desculpas. A história distorcida. A notícia mal informada. Vivendo e errando. Errando e aprendendo... Aprendendo a não errar mesmo que errando. Aprender a conviver com o erro e fazer dele um companheiro próximo. Evitar o erro. Errar por errar. Erro pra uns, acertos pra outros. Errar e chorar. Errar, chorar e prosseguir. Errar, chorar e desistir. Erros técnicos, vitais, cômicos. Erros médicos, políticos, astronômicos, jornalísticos... O erro de ortografia, concordância e regência. O erro da carta de amor enviada para o cafajeste. O erro de amar quem não te ama. A condição humana conjuga esse verbo - presente, pretérito perfeito, pretérito mais que perfeito, pretérito imperfeito, futuro. Diariamente somos convidados a errar. E, constantemente, nossa memória nos golpeia com o branco da responsabilidade do concerto. Sabes conjugar o verbo concertar? Mas não esqueça: antes do ele ou do nós conjuga-se o eu. Então, eu conserto...

terça-feira, 22 de julho de 2008

Eu sou um texto

Eu sou um texto. Minha anatomia é uma mistura de ossos, costelas e palavras. Sou feliz anatomicamente. Sou um texto tecido pelas compreensões que faço de mim, dos outros e dos inúmeros universos que transito. Tem dias que movimento, sem necessidade, vírgulas e exclamações. Sinto-me bem com as interrogações do meu corpo. Minha carne é estampada por signos que, isoladamente, alimentam os preconceitos do globo ocular dos “outros”. Mas se os “outros” tentarem entender o todo, vão descobrir as metáforas, ironias e hipérboles de um humano que transborda idéias e emoções codificadas. Meu suor exala para o mundo exterior todas as frases ou expressões desnecessárias. Tenho medo do ponto final. Por isso insisto nos três pontos. Não me acostumo com o travessão e a crase – eles me limitam. Não conheço todos os personagens que habitam em mim. Uns são simpáticos, conversadores. Outros nem falam. A maioria desses personagens não pede licença pra falar. Acho que não os eduquei corretamente. Eu também sou um texto inacabado com espaços brancos para serem preenchidos. Contos, fábulas, quadrinhos, dissertações. Há infinitas possibilidades de redigir a si próprio. Eu procuro as mais criativas e loucas formas. Não sou geometricamente estruturado. Existem em mim imperfeições cruéis. Não uso dicionários. Utilizo a metalinguagem para explicar até o inexplicável. E por fim, sou um jogo de palavras cruzadas de um jornal que publica as mentiras reais de um apaixonado...
Saulo de Tasso Russo Barreto

sábado, 24 de maio de 2008

Eu!

Quero rir das vossas caras caricatas. As mesmas caras que eu vejo na TV. As caras impunes, vencidas pela monotonia da rotina planejada. Quem vos acorda é o despertador? Eu me levanto com o ruído dos personagens dos meus sonhos. Sim, eu sonho. E nos meus sonhos não existe espaço para as palavras baratas, compradas ou alugadas que saem cuspidas de bocas mercantis. Minhas propagandas estão no meu riso irônico, nos ambientes que desprezo, dos comentários que dispenso e da antipatia que lanço àqueles que experimento e não encontro sabor. Gosto de devorar as pessoas e perceber o tempero que elas tem a me oferecer. Ultimamente minha língua adaptou-se ao insosso. Quero rir pela certeza da inveja que provoco naqueles que procuram o otimismo improvável do dia-dia. Meu riso para os que se sentem superiores, para os metódicos que não entendem que alguns nascem para contrariar as leis e regras, mesmo que elas sejam estúpidas e banais. Meu gingado e musicalidade para os usuários de blazers. Minha androgenia para machos e fêmeas que se limitam na seleção natural dos imbecis. Meu grito irritante nos ouvidos dos que povoam espaços cercados por arames ideológicos. Saio pela rua como louco e como louco rodopio pelas palavras, pelas imagens fotografadas dos outdoors e pelos papéis sujos do jornal. Sou filho do Verbo. Irmão dos pronomes possessivos. Sou a conjugação exata do presente do indicativo. Sou mais, sou o futuro imperfeito dos sujeitos que teimam em se ocultar.


Saulo de Tasso Russo Barreto

quarta-feira, 14 de maio de 2008

A casa e o lixo

Essa casa é grande demais para mim. Ela não me cabe. Foi construída para ter uma vida própria. As janelas gritam palavrões. As portas me ingnoram. Todos os outros cômodos interagem e fingem não me ver. Essa casa não é minha. Não sei como vim morar aqui. Os quadros desenham o incoveniente dos meus passos. As lâmpadas se apagam quando passo. Minha respiração provoca o vômito nas torneiras. Pela manhã, os fogões se acendem. A noite, a geladeira escancara sua porta. Os colchões me comprimem quando deito. A mesa resmunga numa língua que eu não entendo. A porta principal está aberta. Ela dá para um corredor claro onde o infinito se mistura com as possibilidades escuras do meu medo. As vezes ouço uma voz dizer que a culpa é minha. Reconheço um pouco de mim nos tijolos sobrepostos e na tinta amarela das paredes. As paredes são neutras e isso me faz desconfiar delas. O chuveiro derrama lágrimas de ódio. O ralo consola-o dizendo que eu não demorarei a ir embora. Quando o relógio da parede emite um ruído informando que são cinco horas da tarde, o interfone toca. Toca três vezes. Atendo e não escuto nada. As flores dos vazos passam o dia falando mexericos. As garrafas d´águas sempre se lamentam. As panelas se envolvem em brigas com os garfos, colheres e facas. De tudo, sinto um ar de cordialidade do lixeiro. Não me aproximo muito. O lixo me sorri gratuitamente. O mal cheiro dele não me incomoda. As moscas que nele pousam parecem ser suas amigas. Sinto vontade de falar com o lixo e todas as suas imundices. O lixo deve estar apaixonado. Já vi rascunhos de carta de amor com ele. Vi também uma foto, mas não identifiquei de quem era a imagem. O lixo da minha casa, se é que é minha casa, fica solitário num canto abandonado. O lixo é tratado como um coitado. Mas ele não liga. Me incomoda quando a casa me ingnora. O lixo não. Vive sorridente. Não existe tempo mal para ele. Sempre recebe as escórias, mas nunca perde o bom humor. Talvez se me unir ao lixo supere o resto da casa. Talvez não. É dificíl viver como o lixo. Mais difícil ainda é transpor aquela porta aberta. Admiro o lixo. Mas nãoq uero uma total aproximação. Um dia quero ser um lixo. Um lixo humano só, numa casa que me tortura por suas intolerâncias.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

OVERDOSE

Dei minha cara à tapa. Fui lá, chinguei, pisei, gritei e soltei todo o sarcasmo acumulado de dias de insônia. Não tive a mínima paciência que me pediram para ter. Falei tudo o que devia. Passei na cara as dívidas, os erros, as mágoas. Rasguei a tua roupa. Rasguei a minha roupa. Ouvi palavrões, gritos, sussurros. Ouvi a máquina de escrever da delegacia. Ouvi o delegado. Ouvi o choro da minha mãe no telefone. Nada disso me acalmou. Cheguei em casa e tomei o litro do uísque. Quebrei o copo no chão da sala. Peguei um caco de vidro e cortei a minha pele que transpiarava rancor, ódio. A TV exibia um filme de amor. Soltei uns dois ou três palavrões e corri para o banheiro. Vomitei todo o meu espírito. Joguei para fora tudo o que em mim prestava. O mundo ganhou um inimigo. A partir de hoje as minhas palavras serão destinada àqueles que por um motivo foi vítima da cobrança para serem mais humanos. A partir desse instante, as pessoas não vão passar de indivíduos reduzidos em suas verminoses. Lutarei contra o uso dos bactericidas. Quero que a raça humana volte a sua condição de microorganismo. Não sei bem ao certo o motivo que me levou a ser tudo isso. Nem sei bem ao certo o que sou: anjo, demônio, homem, mulher, criança. Apenas me recordo do seu rosto calmo, e suas palavras saindo de sua boca e entrando no meu ouvido. Do meu ouvido, as suas palavras desceram pelo vasos sanguíneos e chegaram no meu sistema digestório. Essas palvras foram degradadas pelo meu ácido clorídrico. Foram trasnformadas em escremento. A última coisa que ainda aparece nas bolhas de minha memória foi o teu adeus sem lágrimas e a minha esperança em prantos.

Saulo de Tasso Russo Barreto

terça-feira, 29 de abril de 2008

Eterna saudade

Não havia muitas pessoas no seu enterro. Os familiares preferiram fazer-se presente com uma coroa de cravos e uma faixa branca, onde se podia ler: "eternas saudades". Os choros derramados e as velas acesas eram de suas companheiras de trabalho, ou melhor, suas amigas. Suas amigas, quase irmãs, que acompanharam os desafios do dia-a-dia da sua profissão. Distante, perto da lápide de uma dama da sociedade, o cafetão jogava suas pragas na falecida. Ela morreu devendo uma quantia considerável. Não se conformava de ter pedido de uma só vez a melhor de "suas" meninas e o dinheiro que ela devia por anos de serviços prestados.

Sua morte ainda era um mistério. Tinha sido encontrada nua e esfaqueada no quarto de um motel. Seu caso estava sendo investigado pelas autoridades. Pelo menos é o que dizia o delegado do Departamento de Polícia, um dos suspeitos pelo crime.

A última pessoa a deixar o cemitério foi uma moça alta, magra, de olhos esbugalhados que vestia um vestido preto bordado com rendas. Essa moça chorava muito. Não se conformava de ver sua companheira de apartamento deitada num caixão barato. "Ela sempre deitou-se nas melhores camas da cidade". Agora, estava deitada sem nenhum companheiro ao lado, estava sozinha. "Pelo menos está deitada com a mais pura das companhias, as flores. Vai com Deus, amiga".

Aos poucos, pingos de chuva começaram a cair. O coveiro decidiu cobrir o caixão com uma lona para só no dia seguinte enterrar de uma vez aquela vítima de um dos crimes mais chocantes da pacata cidade. O cemitério estava com um cheiro forte. Um aroma de vazio. O vazio de corpos sem almas. E os vermes, esbanjando vitalidade, já começavam a rondar a nova carne.

Logo a chuva parou. Já era madrugada. Do cheiro de morte podia-se sentir um outro mais apurado. Esse outro cheiro vinha detrás de uma árvore. Uma árvore que alugava seus galhos para morcegos e corujas. Esses animais sinistros só encontrados em cemitérios. Havia também uma ou duas rasga-mortalha. Uma fumaça sutil, discreta, fazia acrobacias sobre a atmosfera densa das lápides. Algum humano vivo estava ali. Todos sabiam que muitos procuravam os cemitérios nas madrugadas para realizar inúmeras atividades. Rituais apocalípticos, sexo, meditação, piquenique, roubo de letreiros de bronze que decoravam os túmulos. Possivelmente, dessa vez, aquele que estava atrás da árvore estava fumando alguma erva. O vício de um fazendo inveja aos corpos mortos, que enquanto vivos expeliam pelos seus poros os inúmeros e diversos vícios típicos dos homens. Vícios conscientes e inconscientes, lícitos e ilícitos, os vícios dos fracos e dos fortes.

O sujeito atrás da árvore tinha um porte esquelético. Usava uma calça preta suja e uma camiseta vermelha sem nenhuma estampa. Possuía cabelos encaracolados e brincos nas duas orelhas. Estava fumando. Depois de consumir um de seus cigarros preparado com cuidado por ele mesmo, levantou-se e foi em direção da cova da mais nova moradora do cemitério de Nossa Senhora da Purificação. Examinou cuidadosamente a cova coberta pela lona preta. Sentou-se olhando para a coroa de flores enviada pela família. Fumou mais um pouco e decidiu retirar a lona. Quando viu o caixão soltou um riso irônico. No mínimo era um pobre que estava ali dentro. Apenas uma coroa de flores e um caixão barato. Pegou algum instrumento de ferro e começou a bater com força nos cantos do caixão. Logo fez uma fissura e com uma força mínima abriu e deu de cara com uma das mulheres mais linda que tinha visto.

Ficou por alguns segundos olhando para aquela moça que julgou ter traços tão doces e tranqüilos. Mal sabia ele que em vida, aquela mulher usava do atrevimento e da malícia para sua sobrevivência. Ela nunca dispensou uma confusão. "Eu gosto de um barraco". Desde seus quinze anos tinha aprendido que no mundo as coisas resolvem-se no grito. Nunca hesitou em chamar palavrão. Ela não chegava a ser temida pelas pessoas. Pelo contrário, era amada. Todos a amavam. Era uma pessoa prestativa. Mas não inventasse de pisar no seu calo. Muitos riam de suas maluquices. A única pessoa que não gostava dela no bairro era sua professora de catecismo. Dizem que a menina havia descoberto algum segredo de sua professora e com isso fazia chantagens. As más línguas espalhavam o boato de que a "professorinha" tinha um caso com um padre que esteve por pouco tempo na paróquia. A verdade ninguém sabe ao certo. Mas aos doze anos ela fez sua primeira comunhão. Mas nunca conseguiu decorar a salve rainha direito.

Ele achou pura e delicada a figura deitada junto das flores. Retirou flor por flor. Rasgou vagarosamente o vestido branco que ela vestia. Passou a mão sobre seus cabelos negros e lisos. Com muito esforço conseguiu virá-la de bruços. Sua bunda era volumosa e bem definida. Excitado, baixou o zíper da sua calça e pressionou seu pênis na carne fria daquela mulher desconhecida. Seus pensamentos não obedeciam a uma ordem lógica. Deu muitos personagens para aquele corpo morto. Primeiro imaginou-a professora do jardim de infância. Depois atribuiu a ela o ofício de dona de casa, que zelava pelos filhos e pelo marido. Imaginou-a de várias maneiras. Gozou.

Sobre o corpo dela e com seu pênis ainda encaixado em sua bunda, relaxou por alguns minutos. O ritmo cardíaco aos poucos foi voltando ao normal. Saiu de cima do corpo, virou-a para vê-la novamente. "Uma Santa!" Colocou-a na posição que estava, fechou o caixão e cobriu com a lona. Saiu sem muita pressa, com passos despreocupados, vagando pelos labirintos de lápides. Enquanto andava, aproveitou para fumar mais um de seus cigarros. Viu o túmulo da Ana que morreu de um acidente. Viu o túmulo do senhor Francisco José que faleceu de câncer. Parou para ler os versos inscritos no túmulo do poeta popular Manoel Caiçara. Admirou a beleza de Maria Aparecida que se suicidou aos quinze anos por motivos desconhecidos. Viu flores, velas, santos, querubins. Viu também uma grade com uma cruz imensa onde diziam que ali estava uma menina que virou cobra quando morreu. Ela havia virado cobra porque não tinha sido uma boa filha. Riu. Parou diante o túmulo com uma foto de uma criança. Ele sentiu um arrepio quando imaginou uma criança morta. Por minutos ficou olhando a foto do menino. Seu momento de contemplação foi interrompido por uma voz que veio detrás dele.

- Não esqueceu de nada, rapaz?

Assustado virou-se para ver quem estava falando.

- Lembra-se de mim?

Ele não acreditou no que viu. Ali, diante dele, estava em pé justamente a moça de feições pura e delicada. A moça morta no túmulo estava falando com ele.

- Você está morta! – ele disse em voz baixa.

- Quantos baseados você fumou? Rapaz, vamos deixando de conversa mole e passa a grana que você me deve.

- Você está morta! Você é a moça do túmulo que abri.

- Cinqüenta pelo serviço e mais vinte por me fazer perder tempo aqui com você.

- Como assim? O que é que você está falando? Que negócio é esse de cinqüenta, vinte. Eu num devo nem pra vivo, imagina pra gente morto.

- Amigo, ta pesando que dar a bunda é fácil? É o sexo mais procurado pelos meus clientes, logo é o mais caro. Cinqüenta pelo serviço e agora mais trinta por essa conversa mole. Eu tenho que trabalhar, meu bem. Vamos logo, passa essa grana rápido.

- Que serviços você me prestou? Você está morta! Não vou pagar nada a defunto.

- Veja bem, querido. As coisas funcionam assim comigo: me paga logo o que tu me deve e some, caso contrário, chamo o Elias, meu cafetão, e tu ta ferrado.

- Você está morta, querida!

- Querido, se eu estivesse morta estaria conversando aqui com você?

- Você é uma alucinação da minha cabeça, só pode ser.

- Nossa! Eu provoquei tudo isso em você. Nunca nenhum homem delirou tanto comigo assim... Ta certo que minha bunda tem algum mistério que eu desconheço. Passa a grana!

- Meu Deus! Que erva foi essa que eu fumei? To falando com gente morta!

- Ei! Não coloca o nome de Deus nas coisas, ok? É o seguinte, vou ser boazinha, me paga só os cinqüenta que tu me deve.

- Eu não lhe devo nada. Você nem humana é.

- Como assim? Ta vendo esse corpinho aqui? Essas curvinhas aqui? Esses peitos enormes aqui? Tudo isso é carne. Carne de primeira. Sou a mulher mais disputada dessa cidade. Por isso que não sou barata. Também acho um pouco salgado o que eu cobro. Mas também tem o Elias, aquele safado! Tu sabe o que aquele cafajeste faz comigo?

- Sei não senhora, nem quero ouvir.

- Ah! Mais tu vai ouvir sim. Tu num sai daqui enquanto eu falar. Pois bem, o Elias, desses cinqüenta, fica com trinta. Eu fico com o resto. Esse resto é para juntar com os outros restos dos outros clientes pra pagar as contas lá de casa, porque a casa não é minha, é do Elias.

- Vamos fazer o seguinte. Olha ao seu redor e vê onde você está.

- Claro que sei onde estou, querido. No cemitério. Pulei esses muros várias vezes. Nunca entendi porque tem gente que tem tara para transar em cima de cova. Vai entender. Mas te digo, já fiz em lugares piores. Acredita que quando eu morava na capital um cara me pagou pra gente transar no zoológico? Na frente do macaco! O macaco ficou excitadíssimo. Nossa! O cara ficou louco. Mas deu zebra...

- Era zebra ou macaco?

- Não! Deu zebra, sabe? Deu azar. O macaco começou a gritar lá e fazer barulho. Acabou que a polícia levou a gente em cana. Mas o cara era filho de bacana e num instante liberaram a gente.

- Ainda bem! Eu só quero dizer que você deve ser algo de minha cabeça. Você não é real. Pelo menos até alguns dias atrás. Você está morta, me entende?

- Escuta! Não tenho tempo para ficar aqui ouvindo conversa de viciado. Você já teve seu sexo, agora me paga por ele.

- Olha, vamos aqui comigo. Vou te mostrar teu túmulo.

- Eu num saio daqui nem morta! Paga logo senão eu grito pelo Elias.

- Então grita! Vai! Grita!

- Malandro safado! Elias! Elias! Elias!

- Pode chamar, o Elias não vem. Você está morta!

- O Elias deve ta ocupado com a Regininha. Ela é muito tapada, sabe. Todo dia ela tem que chamar ele para resolver algum pepino. Ela é bobinha, coitada. E feia também. Nossa! Com ela você pode chamar de morta. Ela é a verdadeira morta-viva.

- Olha, preciso ir. Daqui a pouco amanhece e os funcionários chegam. Vai assustar outro, porque a mim você não assusta.

- Grosso! Audácia sua falar assim comigo! A vida é difícil sabia? – ela falava soluçando – Saí de casa aos quinze anos porque peguei um bucho. Tive que dar minha filha para ela não passar fome. To nessa vida por falta de opção.

- Olha, desculpa. Não queria ofender. Como assim? Eu to consolando um defunto!

- E ainda tem mais. Não posso sair na rua que o povo me xinga! Me chama de safada, puta. É peso o que eu passo, só eu sei.

- É... a descriminação é horrível. Também passo por isso, só porque uso brinco, tatuagem e fumo.

- Imagina se descobrirem que você transa em cemitério?!

- E ainda mais com gente morta!

- Para de me chamar de morta seu indelicado! Vou embora. Seu estúpido. Não me procura mais ta me entendendo. Não me procura mais! Tu ta queimado comigo! Se aparecer, morre. Ouviu! Morre!

Ela saiu chorando entre os túmulos. Ele ficou vendo ela desaparecer. Ainda não entendia o que tinha acontecido. Era tudo muito estranho. Pensou em ir até o túmulo mais uma vez. Mas ouviu um barulho. Já estava amanhecendo. Deviam ser os funcionários do cemitério. Escorou-se ainda numa lápide e ficou fumando. Jogou o cigarro no chão, pisou-o e começou a andar em direção do muro que havia pulado para entrar no cemitério. Enquanto andava, viu as lápides de Maria Antonieta, uma senhora que morreu de morte natural. Viu Otávio, o dono da mercearia que morreu de infarte. Tancredo que morreu assassinado por bandidos. E viu por último uma lápide com uma foto de um jovem de cabelos encaracolados que aparentava ter seus vinte e cinco anos. Ele usava brinco nas duas orelhas. Não havia coroas de flores, nem velas, nem querubins. Havia apenas letras em bronze dizendo: eternas saudades. Chorou. Acendeu mais um cigarro e desapareceu por detrás das paredes do cemitério de Nossa Senhora da Purificação.


Saulo de Tasso Russo Barreto

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

VIOLETAS

O quarto estava úmido. Um vento frio e irritante circulava no ambiente. A atmosfera estava confusa, ele não sabia se orientar no tempo. A cama com lençóis brancos e travesseiros largos. A cama era grande, mas só havia ele ali. Não sabia se no restante da casa poderia encontrar alguém, por isso decidiu não gritar. Afastou o medo súbito que queria dominá-lo. Olhou para frente como se no horizonte houvesse alguma fresta de esperança, algum ponto sinalizando o caminho. Que caminho? Sabia apenas que existia, o resto eram apenas pontos flutuantes na densa memória. Viu uma janela de grandes proporções. Estava aberta. Viu violetas. Bonitas violetas, parecia que era um jardim. Um jardim bem cuidado, repleto de violetas. Resolveu observar as violetas que balançavam vagarosamente pela fraca corrente de ar. E por minutos esqueceu da única coisa que lembrava: que existia. Sua existência foi esquecida como toda sua história. A cor e o perfume das violetas o havia levado para o vazio. Por segundos visitou o vazio. Não quis procurar respostas lá, deixou que as coisas tomassem seu curso natural. Sentiu seu corpo leve. Dormente, voltou para si.
Uma coisa o intrigou, percebeu que estava nu embaixo dos lençóis. A nudez o incomodava, aumentava sua agonia. Procurou ao redor da cama se havia roupas. Não havia. Conformou-se e começou a olhar para si mesmo. Talvez desta maneira pudesse lembrar de alguma coisa. Algo o animou: a satisfação do seu corpo. Gostou dele próprio. Mas a falta de respostas e também de perguntas o fez voltar para o nada. Continuou a observar o ambiente. Do lado esquerdo da cama um criado-mudo com um livro. Estirou o braço e leu o título: Vidas Secas, Graciliano Ramos. Engraçado, era como estava sua vida: seca. Teve preguiça de começar a ler, se é que já não havia lido.
Uma idéia começou a atormentá-lo. Pensou na possibilidade de estar morto. Uma lágrima escorreu de seu rosto. O mistério da morte. Ninguém sabia o que havia depois que a vida acabasse. Acalmou-se e teve a única certeza até agora: a que estava vivo. Sentia profundamente que estava vivo. Derramou mais uma lágrima, como se estivesse feliz pela vida que pensara ter perdido. Então achou que tudo aquilo era um sonho, ou talvez um pesadelo. E resolveu tentar dormir para quando acordar tudo estivesse resolvido. Acomodou-se entre os lençóis, encostou sua cabeça no travesseiro visualizando Vidas Secas e dormiu.
Acordou. A sensação era mesma, mas desta vez com uma única diferença. Olhou para esquerda e viu o livro, olhou para frente e viu as violetas. Quando olhou para seu lado direito havia uma mulher. Uma mulher nua. Seus cabelos ruivos e longos caídos sobre ombros de pele branca, lisa e de cheiro forte. Dormia. Começou a olha-la. Surpreendeu-se com sua beleza. Seu corpo desenhado no equilíbrio de suas curvas. Não entendia. Nada fazia sentido. Quem era ela? Ou melhor, quem era ele? O que estava se passando. Percebeu que a mulher havia acordado. Olhou para os seus olhos. Não acreditou no que viu. Sentiu o doce do castanho-mel de suas pupilas. Ela abriu um sorriso enigmático. Ele também sorriu.
Um desejo louco começou a dominar sua mente. Não quis saber quem era ela, o que fazia ali. Não resolveu perguntá-la nada. Começou aproximar seus lábios do dela. Beijaram-se. Beijos demorados, recheados com a paixão e com o mistério. E os dois corpos em pouco tempo unidos transformaram-se em um só. Um prazer indescritível na dormência de suas carnes. O suor que escorria de seus corpos umedecia mais ainda o ambiente. O cheiro das violetas passava pelas suas narinas e despertava mais ainda o desejo. Depois de algum tempo ele dormiu. Antes de adormecer planejou para quando acordar perguntar todas suas dúvidas a ruiva, àquela mulher que tinha propiciado o momento mais gostoso desde que havia despertado naquele mundo louco. Adormeceu por horas...
Acordou. A sensação já não era a mesma. Havia uma alegria dentro de si. Lembrou do que tinha acontecido antes de dormir, a alegria aumentava. Olhou para o seu lado esquerdo, não havia o livro. Olhou para o direito. Não havia a ruiva. Desaparecera. Estava novamente só. Quis chorar. Engoliu as lágrimas. Onde estava a mulher? Mas havia violentas, apenas violetas...